Ressurreição (2016) - Uma vida nova para um filme bíblico



A história da Humanidade conhece um relato de uma morte e ressurreição de um homem. Propagou-se pelos séculos, até hoje, pela tradição cristã. Esta história é sobre um conhecido homem nazareno chamado Jesus.

Esta narrativa já foi muitas vezes adaptada a filme; na maioria das vezes seguindo a sua vida de perto, dos 30 aos 33 anos, até à morte ou ressurreição. Nesta longa-metragem, no entanto, seguimos um outro homem. Clavius é um soldado romano de alto estatuto, um braço direito de Pôncio Pilatos. Tornou-se testemunha da morte de Jesus por acaso dos seus deveres, e pelos mesmos deveres acompanha e exige a soldados hierarquicamente inferiores a guarda do túmulo, para evitar o rapto do corpo. Após o seu desaparecimento, a narrativa centra-se, então, no seguimento à ressurreição de Jesus, quando Clavius se vê envolvido na missão de investigar o paradeiro do corpo, depois do encontro do sepulcro vazio.

Este é um filme cristão, que segue lado a lado com os relatos bíblicos sobre a hora da morte de Jesus e dos acontecimentos posteriores à mesma. Embora haja acrescento de personagens, centrando-se especialmente numa delas, o soldado Clavius, denota-se cuidado na interacção com as figuras bíblicas. Esta é sóbria e discreta; os artifícios da imaginação são, no geral, respeitadores de limites.

Com Clavius, acompanhamos a história de uma perspectiva diferente, sendo levados, com ele, na descomprometida investigação distanciada e racional dos factos; na dúvida e na desconfiança. A aproximação ao desvelar do véu vai-se aproximando das personagens e dos relatos dos Evangelhos, de forma subtil e do ponto de vista de Clavius.

O filme consegue um prodígio interessante: de acompanhar o cepticismo e a dúvida do soldado conforme este vai descobrindo relatos e entrevistando testemunhas. A sua procura pelo corpo de Jesus e pelos culpados do seu roubo vai-se tornando uma procura pela verdade dos acontecimentos, devido à falta de evidências em qualquer dos lados: dos cépticos e dos crentes. É curioso acompanhar esta narrativa racional e lógica de uma personagem que não conheceu Jesus senão no momento da sua morte. De uma personagem, de certa forma, descomprometida e inteligente, curiosa e confundida.

A curiosidade e a dúvida de Clavius são espelho de qualquer ser humano; até mesmo dos discípulos de Jesus. Esta é uma inovação do filme, em relação a outras versões, porque estabelece uma ponte entre a contemporaneidade dos primeiros cristãos e a nossa. Entre a procura da certeza de uma verdade factual compreendemos o cepticismo, a dúvida e a crença. Clavius não conheceu os 3 anos de apostolado de Jesus, como nós também não conhecemos. Infelizmente, essa promessa de potencial acaba por cair, pois acaba por aflorar um contacto com o Yeshua ressuscitado e os seus discípulos. No entanto, acaba por ser um filme diferente, que arrisca um pouco contar esta história de uma maneira inovadora.


Como é, de certa forma, previsível e com uma mensagem clara, Ressuscitado é um filme destinado a um público maioritariamente cristão; ou, pelo menos, interessado na história e nos relatos da ressurreição da figura de Jesus. Aborda alguns episódios que teve com os discípulos desde a morte até à Ascensão: alguns relatados por personagens, outros seguidos directamente.
É especialmente interessante na abordagem da dúvida e insegurança dos primeiros tempos, aliadas à incredulidade e alegria, à aventura, à experiência da descoberta do apostolado sem a presença física constante daquele que era o líder.

No entanto, o filme é também um pouco distante. Talvez seja por uma procura do racionalismo possível, para agradar a mais públicos; talvez seja, também pela preocupação de restringir-se o máximo possível aos factos bíblicos. Disto resulta que as personagens não sejam aprofundadas muito significativamente. Cleofas acaba por ser o mais explorado e, mesmo assim, entrega-se pouco às emoções e traços de personalidade, encarnando um espectador mais ou menos neutro, que poderia ser uma personagem generalizada. Os discípulos são abordados muito superficialmente; no entanto, como é de esperar, as suas intervenções que não são retiradas da bíblia podem gerar desconfiança e dúvida; é provavelmente esta a razão para não serem tão explorados.

Há, no entanto, entre as personagens e os relatos, uma omissão crucial. A personagem de Maria, mãe de Jesus. O filme negligencia não só a sua identidade como mesmo a sua presença. Talvez mesmo uma das figuras mais indispensáveis entre os apóstolos, tem apenas uma breve aparição em ecrã numa das cenas iniciais, em que se mostra Jesus crucificado e morto.

Também é dúbia a caracterização de Maria Madalena; colocam-na como uma testemunha fiel de Jesus; no entanto, paradoxalmente, e dando asas à imaginação, indicia que vive uma vida de prostituição. Este aspecto da sua vida é tradicionalmente associado à vida de Maria Madalena, mas não o será após a sua conversão e encontro com Jesus; e muito menos após a Sua ressurreição. A sua presença na casa de prostituição não é explicada e deixa em aberto dúvidas e incoerências que não se adequam com a personagem nem historicamente, nem com as suas intervenções nas cenas seguintes.

Entre a caracterização de Maria Madalena, e de Maria, mãe de Jesus, seria possível destacar mais algumas incorrecções bíblicas e históricas. Não são problemas que abalem violentamente a qualidade e estrutura do filme, mas são pequenos detalhes que distorcem ligeiramente a mensagem bíblica; ainda que esta seja de complexa interpretação, e um tema sensível; no fundo, para um católico, deve ter-se em atenção quanto a sério se levam as mensagens, por meio de algumas adaptações e liberdades de realização e actuação, de uma perspectiva por vezes descuidada. São, no entanto, pequenos detalhes; que modificam ligeiramente a mensagem, mas não abanam estruturalmente o interesse do filme; e que são compensados, de certa forma, por outros aspectos historicamente bem adaptados. Será interessante verificar a análise dos New Catholic Generation sobre estes aspectos, sob um ponto de vista católico - aconselho a crítica deste canal ao filme.




Em termos cinematográficos, não se destaca de outros filmes bíblicos do mesmo género; não é especialmente diferente, mas é credível e contextualiza bem a narrativa, contendo também alguns cenários especialmente interessantes e bonitos. As personagens têm uma caracterização simples, também credível; os seus traços físicos também não são, no geral, tipicamente ocidentais. No entanto, a língua falada é o inglês, havendo até alguns sotaques britânicos acentuados, o que se torna uma característica negativa em termos contextuais. Era o expectável; não é uma Paixão de Cristo, do Mel Gibson.

A comparação com A Paixão de Cristo vem mesmo a calhar, também, para terminar esta reflexão. A verdade é que essa obra-prima é envolvente e leva o espectador a ser engolido por uma narrativa e performance emocionalmente impactantes. Neste caso, no entanto, como já foi dito, tal não acontece; é um pouco distanciado emocionalmente. Pessoalmente, acabei por percepcionar o filme mais como narrativo, não me tendo sentido especialmente interpelada ou impactada emocionalmente. Mas não é totalmente: Clavius, como personagem um pouco genérica, permite um grau de identificação pessoal, e tanto ele como outras personagens permitiam alguma empatia e relação a estabelecer com o espectador.

O filme aproxima-se da sua tentativa de contar a história numa perspectiva diferente, de um céptico, um investigador que procura factos; mas acaba por não conseguir levar essa missão até ao fim. Acaba por se valer simplesmente do artifício mais fácil: o encontro com a própria pessoa de Jesus Ressuscitado. Como diz o crítico Jeremy Jahns, Clavius torna-se como um dos discípulos, e deixa de ser como nós, espectadores: porque ele viu e acreditou. Assim, perde e abandona a possibilidade de desafiar-nos intelectualmente e instigar dúvida, reflexão, e introspecção. Nem na personagem, nem em nós. Perde-se a oportunidade de abordar a questão aprofundadamente e realmente marcar uma diferença.

No final, é inegável que Ressurreição é um exercício bem conseguido de contar um pouco da história da ressurreição de Jesus a partir de uma nova perspectiva. Criativo, original, e no geral bastante correcto, destaca-se na sua diferença para os filmes clássicos já existentes - pelo episódio que se foca em relatar, e pela perspectiva como o procura fazer. É uma boa oportunidade para qualquer interessado, mas especialmente para qualquer cristão, de repensar e meditar nestes episódios, na sua dimensão histórica e também de forma pessoal. No entanto, não desafiará muitas mentes, nem intelectualmente, nem emocionalmente; é, generalizadamente, uma visão passiva e previsível, numa ficção bíblica ideologicamente clara. Uma agradável mudança no formato clássico de filme bíblico; mas que não instiga mudança no espectador... seja cristão ou não.



6,5/10


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